domingo, 10 de outubro de 2010

O Código da Vinco - Parte 3 - Artisticamente Desautorizado

Leonardo da Vinci (1452-1519) viveu durante a Renascença, mas foi um homem à frente de sua época. Foi pintor, inventor, visionário, matemático, filósofo e engenheiro. Dan Brown acrescenta a essa lista que Leonardo era também "homossexual" (pp.54 e 130). As biografias de Leonardo salientam que, em abril de 1476, ele foi anonimamente acusado de sodomia com o assistente de pintura Saltarelli (conhecido homossexual) e que em 7 de julho do mesmo ano o caso foi arquivado por falta de provas.[6, 7] Portanto, não se pode afirmar que era ou não homossexual. Do que temos certeza mesmo são os erros grosseiros cometidos por Brown quando analisou algumas pinturas de Leonardo tentando nos fazer crer que há um código oculto nelas.



A Madona das Rochas (também conhecida como "A Virgem dos Rochedos")


Quando a personagem Sophie Neveu retira esse quadro dos cabos de sustentação e o põe em sua frente, o autor narra: "Com um metro e cinqüenta, a tela quase escondia o corpo da moça" (p.143). Bem, basta entrar no site oficial do Museu do Louvre para identificarmos logo de cara que o quadro mede 199 x 122 cm e não "um metro e cinqüenta".[8]
Na seqüência, Dan descreve que foram "as freiras" da Confraria da Imaculada Conceição que encomendaram a pintura para Leonardo (p.148). Na verdade, a encomenda foi feita pelos padres da Confraria, já que não existia "freira" nessa instituição.
Em seguida, Brown relata: "A tela mostrava a Virgem Maria de túnica azul, sentada com o braço em torno de um bebê, presumivelmente o Menino Jesus. Diante dela se encontrava sentado Uriel, também com um menininho, presumivelmente o pequeno João Batista. O estranho, porém, era que, em vez da cena que costumeiramente se vê, de Jesus abençoando João Batista, era João que estava abençoando Jesus... E Jesus mostrava-se submisso à sua autoridade!" (p.148). O autor inverteu a identidade de João Batista e de Jesus Cristo. Na verdade, Maria está com o braço em torno do bebê João Batista. Já o bebê Jesus Cristo está à esquerda de Maria, abençoando João Batista.[9]
Logo após, o autor começa a ver o invisível, e diz: "O mais preocupante, porém, era que Maria estava com uma das mãos sobre a cabeça do pequeno João e em um gesto decididamente ameaçador – os dedos pareciam garras de águia agarrando uma cabeça invisível. Por fim, a imagem mais amedrontadora e clara: logo abaixo dos dedos curvos de Maria, Uriel fazia com a mão o gesto de quem corta uma cabeça – como se cortasse o pescoço da cabeça invisível que a mão de Maria, em forma de garra, segurava" (pp. 148-149).
Se você estudar o que os historiadores das artes descrevem sobre esse quadro, vai descobrir que não existe nada do que é narrado por Dan Brown. Essa conversa da "cabeça invisível" de João Batista é mera esquizofrenia artística do autor do romance. O que sabemos de fato é que a mão esquerda de Maria sobre a cabeça de Jesus (e não de João) simboliza proteção. O anjo Uriel seria o "anjo da guarda de João Batista" e aponta em direção a ele.
O autor acertou quando disse que há duas versões de "A Virgem dos Rochedos" (até que enfim acertou uma), mas errou logo em seguida quando tentou explicar o motivo dos dois quadros: "Da Vinci acabou convencendo a confraria a ficar com uma segunda pintura, versão "açucarada" da Madona das Rochas, em que todos se encontravam em posições mais ortodoxas" (p.149). Na verdade, a primeira versão produzida durante os anos de 1483-1486 encontra-se hoje no Museu do Louvre, já a segunda, feita cerca de 20 anos mais tarde (1503-1506) encontra-se na National Gallery, em Londres. Mas, por que duas versões? "Ocorreu uma complicada e amarga discordância em relação ao pagamento: o artista ameaçou vender a obra a um amante de arte que lhe oferecera obviamente muito mais que aquilo que a Irmandade estava preparada para pagar. Esta disputa foi provavelmente a razão de uma segunda versão da Virgem dos Rochedos – a versão que é possível observar presentemente em Londres e que na verdade decorou a capela dos monges em S. Francesco Grande em Milão no século XVI". A versão mais antiga foi provavelmente adquirida com rapidez pelo amante de arte, possivelmente Ludovico Sforza".[10] Posteriormente, Sforza ofereceu o quadro ao Rei da França ou ao Imperador Maximiliano.



A Mona Lisa







Dan Brown não deixou incólume a mais famosa e mais visitada pintura do mundo. Conhecida na França como La Joconde, na Itália, como La Gioconda, e em todos os demais lugares como Mona Lisa, é o quadro número 779 do Louvre.
Quando o professor Robert Langdon, personagem criado por Dan Brown, é questionado se "é verdade que a Mona Lisa é o retrato do próprio Da Vinci, só que travestido?", responde: "É bem possível [...] Mona Lisa não é homem, nem mulher. Traz uma mensagem sutil de androginia. É uma fusão de ambos" (p.130).
Na seqüência, Langdon ensina que as palavras "Mona Lisa" são uma junção do deus egípcio Amon com a deusa egípcia Ísis, "cujo pictograma antigo era L’ISA [...] Amon L’isa" (p.131). E conclui suas considerações com a afirmação: "E esse, meus amigos, é o segredo de Da Vinci, o motivo do sorriso zombeteiro da Mona Lisa" (p.131).
Bem, vamos por etapas, pois é muito devaneio para uma pessoa só.
Primeiro, quem é a modelo na pintura? Algumas hipóteses foram levantadas, mas com certeza, não é Leonardo da Vinci travestido. A alegação mais consistente é de que seja Lisa Gherardim.
"O registro do Battistero di San Giovanni confirma que ela nasceu em Florença, numa terça-feira, em 15 de junho de 1479. [...] Aos 16 anos, Lisa casou-se com um homem dezenove anos mais velho e duas vezes viúvo: Francesco di Bartolomeo di Zanobi Del Giocondo, um dignitário florentino. [...] Na época em que Leonardo começou a pintá-la, ela já tinha tido três filhos, e um deles, uma menina, havia morrido em 1499. [...] E até onde se pode verificar, Lisa não fez nada de excepcional durante sua vida inteira, exceto sentar-se imóvel enquanto Leonardo a desenhava".[11]
Segundo, de onde vem o nome Mona Lisa? Com certeza não é a contração de nomes de divindades egípcias. "A pintura foi intitulada ‘Monna’ Lisa, sendo Monna uma contração da Madonna (mia donna, minha senhora). A grafia "Mona" é incorreta, de origem incerta, mas é a que ficou estabelecida na Inglaterra".[12]
Terceiro, por que o sorriso comedido da Mona Lisa? Não tem nada de "sorriso zombeteiro". Qualquer estudioso ou curioso sobre os quadros de Leonardo vai perceber que aquele sorriso discreto da Mona Lisa não é exclusivo dela. Leonardo pintou outros quadros onde os modelos exibem sorrisos semelhantes, a saber: "São João Batista" (1513-1516); "João Batista com atributos de Baco" (1513-1516); "A Virgem com o menino de Santa Ana" (1510); "Dama com Arminho" (1483-1490). De acordo com Donald Sasson, pesquisador e escritor sobre a Mona Lisa, esse tipo de sorriso discreto fazia parte da etiqueta dos quadros do Renascimento: "Risos – em oposição a sorrisos – são raros nos quadros do Renascimento, e nunca são usados quando a aristocracia e as classes mais altas são representadas. Mona Lisa não ri; ela mostra comedimento e decoro. Um sorriso pode ser considerado como um riso atenuado, como a palavra francesa, sou-rire – "sub-riso" – e a raiz etimológica do latim, subridere, sugerem. No mundo altamente codificado da vida da corte italiana do século XV, sorrisos não são deixados por conta da iniciativa pessoal. Havia numerosos livros à disposição daqueles que desejassem ser introduzidos no código apropriado de comportamento.[13]
Já Giorgio Vasari, biógrafo de artistas e comentarista sobre a Mona Lisa, citou em 1550: "músicos, palhaços e outros artistas ficaram entretendo a modelo, enquanto Leonardo a pintava".[14] Vasari alega ser esse o motivo do discreto sorriso.
O fato é que o sorriso chamava pouca atenção e ninguém o considerava misterioso, mas a partir do século XIX várias teorias conspiratórias surgiram e o marketing do sorriso da Mona Lisa cresceu.


A Última Ceia



Essa pintura mural de 460 X 880 cm, com técnica de óleo e têmpera sobre gesso, na parede do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, é uma das obras-primas de Leonardo da Vinci. Hoje bastante deteriorada, está em processo de restauração.
E lá vai Dan Brown outra vez: na página 252, o autor chama "A Última Ceia" de "afresco" quatro vezes. Brown desconhece que o artista, quando optou por pintá-la, renunciara à técnica conhecida por "afresco" e escolheu a técnica de óleo e têmpera sobre gesso.[15]
Na seqüência, o "culto" Sir Leigh Teabing insinua que na pintura deveria haver, mas não há, um cálice de vinho sobre a mesa. Ele conclui que a ausência do cálice demonstra que o Santo Graal não é o cálice: "O Santo Graal não é um objeto. Na verdade... trata-se de uma pessoa" (p.253).
Tudo bem, vamos explicar porque não existe o cálice na "A Última Ceia", já que os personagens do livro de Dan Brown desconhecem a história dessa pintura. Os três primeiros evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas), relatam que Jesus após cear, tomou um cálice e tendo dado graças, o deu a Seus discípulos. Já o texto de João 13.21-24, apenas revela Jesus indicando que entre eles há um traidor e não mostra Cristo ceando ou bebendo com os discípulos. Foi baseado nesse texto joanino que Leonardo da Vinci pintou esse quadro e, por esse motivo, não aparece o cálice. A ênfase tanto do texto bíblico quanto da pintura não é no pão e no vinho, mas, sim, na surpresa dos apóstolos ao tomarem conhecimento de que entre eles havia um traidor.
Na seqüência, Teabing fala à deslumbrada Sophie que a pessoa à direita de Jesus é uma mulher – "Maria Madalena!" (p.260). E mais: que Pedro, com sua mão esquerda próxima ao pescoço de Maria Madalena, é um sinal de ameaça caso ela passe a ser a líder da igreja (p.265).
Puxa! Dan Brown sofre de alucinações. Primeiro: todos os esboços dessa pintura mural revelam que nela não existe mulher alguma e que a pessoa ao lado direito de Jesus Cristo é João, o amado. Se não for João, onde este estaria na pintura? Segundo: era típico do Renascimento retratar as pessoas supostamente "mais puras e mais santas" com um aspecto efeminado, motivo porque Leonardo o retratou assim (apesar de sabermos que João, o amado, não tinha nada de tão santo assim). Terceiro: se João parece uma mulher, o que dizer de Filipe (o terceiro à esquerda de Jesus)? Quarto: o texto de João 13.24 diz que Simão Pedro fez um sinal a João, "dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere". Essa falácia de Pedro ameaçando uma suposta Maria Madalena não tem nenhum fundamento.
As considerações de Brown sobre as pinturas de Leonardo são um desprezo solene ao conhecimento dos fatos.
Bem, meu conselho é que se algum dia Dan Brown quiser ser seu professor de artes, dê um pinote e saia correndo para não se tornar inculto.
Brown comete ainda outros erros artísticos, mas os relatados já são suficientes.
O hilariante é que nos agradecimentos do livro, Brown revela a profissão da sua esposa: "E minha esposa, Blythe – historiadora de arte, pintora, editora de primeira linha e, sem dúvida, a mulher mais incrivelmente talentosa que jamais conheci". Mesmo??